quarta-feira, 17 de abril de 2013

Ao domingo com... Cátia Lopes dos Reis


Ao domingo com... Cátia Lopes dos Reis

Sobre o meu livro, não sei se lhe chame Obra; vêm-me à lembrança obras-primas e, para essas, ainda me faltará um bocadinho (assim)…





Enquanto adolescente e jovem adulta sempre pensei que na minha vida estaria destinada a grandes feitos, ou médios, mas daqueles que perduram na memória dos outros, que nos fazem ser conhecidos ou reconhecidos, dos que fazem com que as pessoas saibam o nosso nome mesmo sem nos conhecerem. Mas posso dizer, com alguma certeza, que escrever um livro não estava entre o meu leque de aspirações, muito embora só faltasse este ponto para completar o ciclo da vida de “plante uma árvore, escreva um livro e tenha um filho”, não obrigatoriamente por esta ordem, claro. O que posso dizer, com toda a certeza, é que se tornou emergente transformar uma experiência particular da minha vida num testemunho, num alerta, numa mensagem de esperança ou desespero, ou talvez simplesmente num legado, numa parte de mim que devia ser contada, recordada e jamais esquecida.



Afinal, sou enfermeira, a esfera da escrita ficou para trás nos inúmeros trabalhos académicos escritos. Trabalho com doentes crónicos, alguns em estado terminal, mas todos eles com a certeza de que coisas menos boas não acontecem só aos outros.



Ainda assim, a realidade, que não acontece só aos outros, não veio sob a forma de doença crónica, instalada, prolongada. Veio antes com a prematuridade extrema do meu filho Afonso, que nasceu de 23 semanas e 6 dias de gestação. Toda a teoria e prática de cuidar, de lidar com dor e sofrimento não me prepararam para a onda de incompreensão, dor e perda que me assaltou sem avisar. E se viesse de mansinho? Iria doer da mesma forma…



Decidir engravidar e ter um filho desejado deveria ser algo pacifico, natural, com grandes expectativas correspondidas. As únicas dúvidas a assolar a mente de uma mãe deveriam ser: “De que cor serão os seus olhos?”; “Com quem será parecido?”



E não: “Sobreviverá mais um dia?”; “Quais serão as sequelas com que irá ficar pela vida fora?”



São questões que não nos colocamos no dia-a-dia, que se nos escapam por sermos crédulos de que estas realidades não nos atingirão, afinal, só acontecem aos outros, àqueles que não conhecemos, só ouvimos falar por mero acaso e nem captamos a mensagem por detrás da história.



Ora conhecimentos médicos à parte, um bebé prematuro nunca é, nem será quando atingir uma certa idade, um bebé de termo, os seus desafios, comportamentos, acções e reacções podem ser muito diferentes das de um bebé dito normal que nasceu com uma idade gestacional acima das 37 semanas. E assim pode permanecer pela vida fora, diferente, muito diferente. Lutar pela sobrevivência numa etapa tão precoce da vida é completamente anti-natura.



O Afonso nasceu então como prematuro extremo, no limiar da viabilidade, tendo inúmeros desafios e sequelas inerentes à prematuridade e à imaturidade de todos os órgãos. Entre transfusões, cirurgias, cateteres, incubadoras, exames, (sobre)vivemos 123 dias em duas Unidades de Cuidados Intensivos de Neonatologia.



O nosso sistema de valores, enquanto pais, ao decidir entre a vida a todo o custo ou a qualidade de vida, alterou para sempre a nossa visão e tornou-se na maior lição de vida até então.





Num relato emocionado divido-me entre o amor e a razão. O que começou por ser um diário escrito, testemunha silenciosa do meu tormento e quiçá forma de escapar a um surto de loucura iminente, fundiu-se com as mensagens diárias trocadas com uma confidente muito especial, a Ilídia, também mãe de uma prematura nascida em 1998 de 23 semanas e 5 dias. Separadas por mais de 300 quilómetros de distância, encontrámos consolo no “colo” uma da outra, numa linguagem muito própria que apenas é compreendida entre pares, entre pais prematuros. Afinal, como me disse um grande amigo após o lançamento do livro: “Nunca imaginei que estivesse tão perto e ao mesmo tempo tão longe de vós.”



Tornou-se imperioso dotar esta experiência traumática e dolorosa de algum sentido quando percebi que os sentimentos com que me debati assolavam e eram transversais a todos os pais de bebés prematuros.



Quando o fim chegou e nos deixou mais vazios do que quando iniciámos a jornada, corri o risco de voltar atrás no meu processo de recuperação ao percorrer com a memória as salas, os sons, os cheiros de um passado tão presente e recente, ao reviver o que tentei ocultar do consciente.



Não pretendendo, de todo, ser um manual técnico acerca da prematuridade, é antes, um testemunho, uma partilha do mais íntimo e sombrio de mim nessa fase da minha vida.



Num discurso muito pouco apologético, expio a minha culpa, os meus demónios, a minha relação com os profissionais de saúde e com os que me rodeiam, com a sensação de impotência e o dia-a-dia repetitivo e desesperante imposto por uma das batalhas mais duras: A Vida Antes do Tempo!


Cátia Lopes dos Reis

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